Memória do Zeca

César Morán: Cantautor, compositor e escritor

Alguns nomes são imortais, ou ficam para sempre, que é o mesmo. Dias atrás, a propósito do Zeca, dizia-se que a arte nunca morre, e são os artistas que morrem, o qual é uma verdade relativa, pois da beleza, a meu ver, fica polo menos o nome, como da rosa, quer seja a rosa de Eco ou a de Yeats. E é assim que o nome de José Afonso –também conhecido polo diminutivo familiar Zeca Afonso– já tem um lugar na história como um dos artistas de maior relevo nos anos 60, 70 e ainda nos 80. Poucos como ele reuniram as qualidades de cantautor de intervenção social, maravilhosa voz de registo doce e claro, construtor de inúmeros textos e melodias, facilidade para ajeitar a cada letra a música mais própria, natural e à vez em linhas de modernidade.

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Sempre seguimos o seu rasto, sendo para nós uma inquestionável referência, e é por isso que nos comprazeu participar, o passado 25 de novembro, na apresentação do livro José Afonso. Todas as canções, agora reeditado pola Associação José Afonso (AJA). Um livro de enorme interesse que já conhecíamos desde a primeira edição em 2010, com transcrições musicais, prefácio, notas e índices de Guilhermino Monteiro, João Lóio, José Mário Branco e Octávio Fonseca. O evento foi no espaço sempre acolhedor de Portas Ártabras, introduzido por Felipe Senén e com a presença e a palavra do Guilhermino Monteiro, vindo desde o Porto, assim como do Henrique Marques e o António Pimenta por parte da AJA. O amigo Xico de Carinho, figura essencial nas relações do Zeca com a Galiza, deu unidade a um ato nutrido de música, palavra e emoção, intervindo com as harmónicas nas canções que interpretamos, à vez que contava histórias pouco divulgadas.

A imagem mais antiga que do Zeca fica em mim é a do disco Venham mais cinco, que ouvíamos entre livros e apontamentos universitários, e de um modo especial aquele concerto no pavilhão de Riazor em 1976, quando o regime franquista continuava sem Franco e dous anos depois da revolução dos cravos. Falamos com ele a pé de palco e contou-nos os problemas na alfândega ao passar com a sua filha. Igualmente lembro os seus comentários sobre o diferente estado de cousas aqui e em Portugal, onde já se superaram imagens como as que estávamos a viver naqueles momentos: bandeiras e faixas com slogans políticos diversos, a polícia armada (os grises) à espreita para intervirem violentamente, e de repente a gente desce das bancadas até diante do palco, com as faixas e as bandeiras. Era o momento de cantar Os vampiros. Sempre tenho a dúvida de se entre os músicos estava o Vitorino, mas o certo é que estiveram dez minutos a repetir o refrão “Eles comem tudo, eles comem tudo…, e não deixam nada”, a gente entretanto a dançar, a bater palmas, numa atmosfera inquietante, supondo acaso que os grises não iam bater no público enquanto durasse a canção. O primeiro português a quem contei isto, muitos anos depois, foi o amigo Carlos Mendes Pereira, em Vila do Conde. Agora gosto de o contar aqui.


(Artigo publicado no número 481 de Sermos Galiza, suplemento semanal de Nós Diario, sexta feira 24-12-2021)


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