MÚSICA AO VIVO, DE VERDADE
César Morán: Cantautor, compositor e escritor

Ainda que fosse inventado em 1940 em Osaka, entre nós o karaoke chegou nos noventa, essa palavrinha que nunca antes ouvira e que vem do japonês kara (vazio) e oke (abreviatura de orquestra), de jeito que a orquestra toca no vazio, sem voz que cante, ou lido à inversa: cantor ou cantora que canta sem orquestra. O caso é que em pouco tempo se encheram as cidades de salas com reprodutor de música gravada –com voz extraída–, e um dispositivo que fazia passar num écran a letra das canções. Ao pouco foi moda saír de noite a celebrar algo –ou só saír de noite– e meter-se num desses locais onde a gente se desinibia a cantar olhando para o écran, uns porque cantavam bem e outros porque perdiam o reparo ajudados por outros elementos e polo próprio sentido do karaoke.
O passado 14 de maio decorreu em Turim a final da Eurovisão, de cujo sucesso, processo e antecedentes não se vai falar aqui, mas deixando de parte o concurso, entre as atuações especiais foi destacável, ao menos para quem escreve, a de Gigliola Cinquetti, que para regalia dos românticos cantou “Non ho l’età”, a canção com que vencera no festival da Eurovisão de 1964. Natural e discreta, com voz ainda sostida, a sua posta em cena podia lembrar aquela mocinha de apenas dezaseis anos que comovera a Europa. E no entanto, havia uma enorme diferença: a Cinquetti do 64 cantava com uma maravilhosa orquestra que interpretava ao vivo, e a deste ano apenas com a música gravada. Semelha que o público não se dá conta, ou não lhe dá importância, mas é a triste miséria do nosso tempo.
Infelizmente, a música ao vivo está hoje em boa parte ameaçada pola fraude do playback, onde às vezes é difícil para o ouvinte distinguir entre o falso e o real. O playback começou a ser habitual nos programas da TV, talvez desde o início e sobretodo desde os oitenta, o qual era e é explicável ao não haver quase nunca uma infraestrutura técnica que desse garantia de qualidade aos artistas. Mesmo está a ser frequente indicar na pantalha que a voz soa “em direto” quando assim acontece. E noutros âmbitos, como nos espetáculos de ballet clássico e dança moderna, já é normal nos nossos dias a inexistência da orquestra, o que se pode compreender por razões económicas, mas não por outros motivos.
Num mundo em que prima o elemento visual sobre o auditivo, o som continua a ter importância, sem dúvida, ainda que se atenda mais ao seu resultado último que ao modo em que é produzido. Os avanços da eletrónica, o uso de sequenciadores e toda a sua aplicação em arranjos e trabalhos de composição, constituem uma esplêndida ferramenta, mesmo para programar o que se há de interpretar sobre o palco. Outra cousa seria reproduzir ao vivo as sequências pregravadas como quem substitui o persoal na portagem da autoestrada. Cumpriria estar atentos, pois alguma vez se tem aludido a minúsculas agrupações com música gravada para amenizar a festa, e não iam fazer o mesmo os que dizem fazer cultura
Publicado no número 504 de Sermos Galiza, suplemento semanal de Nós Diario, sábado 4-06-2022.
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