César Morán: Cantautor, compositor e escritor

O QUE SE VAI PERDENDO OU SE TRANSMITE
Nestes dias de festa todo é cantar e tocar. Polo menos na minha família foi sempre assim. E como, à margem das ideias, sempre se seguiu a tradição, as festas iniciam-se na Noiteboa sem cessarem até passar os Reis. Estes dias seguem a ter para mim um aquele saudoso, longe dos estertores do mundanal ruído, ao que contribuíram alguns cantares íntimos como “Vamo-nos já pr’a aldeia”, “Por entre as silveiras” ou o “Navidad” de Machín que se cantava a duo em doce melancolia. Em todas as famílias chega um momento em que alguém já não está, o que aumenta a saudade. E é por isso que minha mãe e minha avó, sem perderem o tom bem afinado, interpretavam com olhos húmidos a cantiga de ausência com um fio de langor inevitável na gorja. Quando uma geração se vai indo a história continua, e esse fio perdura e vai passando ante as novas ausências como outro lápis de carpinteiro. Muitos cantares aprendéramo-los na casa sem que nunca os chegássemos a ouvir na rua. Outros foram reconhecidos em diferentes versões, como o “Sombreiro de palha” cujas gravações discográficas diferem bastante das que cantávamos de nenos, no Berço ou nas montanhas de Ourense. Aquela de “Vamo-nos já pr’a aldeia” ouvíramo-la por primeira vez em terras bercianas –ou era o que mamá dizia–, e foi a que nos meus adentros identifica a Noiteboa no passo dos anos, e em cujas vozes harmónicas intervinha também a de papá. Em “Por entre as silveiras” havia igualmente diferenças de ritmo e de letra, de “farelo” a “fatelo”, por exemplo, segundo a cantassen en Valtuilhe ou em Campos, o que também não aparece nas versões mais divulgadas.
Dos cantares de Reis poderia dizer o mesmo, ainda que sempre me assalta uma pergunta: por que é que me vêm mais à memória os cantos em castelhano e não tanto em galego? Mereceria talvez uma análise, uma pescuda ou uma pesquisa, pois se quero lembrar aparece decontado o “Venid Baltasar, Gaspar y Melchor / a adorar al Niño con lindo primor” ou “De Oriente salen los Reyes / por una estrella guiados”, fermoso e lentíssimo romance que minha avó berciana cantava ano trás ano deixando ecoar a voz nas ondas do ar na sala ou na cozinha. Falo das quatro últimas décadas do passado milénio, quando a vida mantinha ainda alguns traços dos séculos que hoje vão perdidos. Eu gosto de manter certas essências entre a gente que mais quero, se fôr possível. Mas também acontece que entre músicos cresce aos poucos a tendência a falar, discutir e às vezes esbardalhar em reuniões familiares e amigas, talvez mais do que cantar e tocar, o que felizmente ainda fazemos. E é quando se tende a criticar se tal ou qual música é melhor ou pior, se é mais ou menos autêntica ou procura outras ressonâncias para sucessos comerciais a grande escala. Eu, que sigo a diferenciar a arte do artifício, ainda acredito no “rapto” como início indispensável da criação, como um sopro, e na arte como facto interactivo com capacidade de emocionar. Feliz Ano Novo.
(Publicado no número 536 de Sermos Galiza, o semanário do jornal Nós Diario, no sábado 14-01-2023)
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