César Morán: “Cantar nun concerto”

O PÚBLICO INTERACTIVO

César Morán: Cantautor, compositor e escritor

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Dificilmente se comprende a arte sem comunicar. Alguém pode fazer arte para si próprio e guardar numa gaveta, mas se algum dia, próximo ou lonjano, essa matéria oculta se conhece, chegado foi o instante em que a arte se consuma ou se completa. Amo os instantes mágicos da interação, habitar nos Uffizi a sala primaveral de Botticelli, contemplar chorando a cúpula de Bruneleschi, ler a última página do Merlín cunqueiriano, ou morrer no Adagietto de Mahler nos canais da lagoa. Difícil encontrar maior prazer estético que a emoção compartida, esse estado de alma quando se produz entre o artista e o seu público, que às vezes é o silêncio, outras vezes o aplauso brioso e outras o canto, o cantar da empatia colectiva.

Cantar num concerto vem sendo habitual se reparamos nos últimos eventos, e não sempre é igual nem se produz da mesma maneira nem pola mesma causa. Lembro um magnífico concerto de Pablo Milanés em Cambre, há poucos anos, onde um espectador –que devia de saber todas as canções do trovador cubano– não parava de cantar com voz firme e decidida, impedindo-nos ouvir e degustar com sossego. E ainda mais, no tempo dos telemóveis, quando a gente anda a gravá-lo todo e em toda a parte, esse suposto vídeo na verdade não serviria para nada. No entanto, cantar num concerto é maravilha quando sem estridências o canto chega a ser coral, harmónico e levado por um rapto ou enlevo solidário de irmandade. É o que acontece, por acaso, no meio do concerto, quando o artista dá início a esse cantar que todos sabemos –e que ele sabe que sabemos porque há muito tempo que o sabemos–, e há um jogo de volumes, de palavras e sílabas insinuadas, e fica em silêncio para que nós o digamos, o sigamos e o cantemos a meia voz. E todo acaba redondo, em aplauso sostido e em acenos faciais irreprimíveis. É a ópera plena.

E temos ainda um outro nível, o do músico que explora todas as possibilidades de interação com o público, convertendo parte do espectáculo em aula didáctica onde todos acabamos insertos. Já lho víramos fazer a Chick Corea ou a Bobby McFerrin nos festivais de jazz de Donostia e de Gasteiz, brincando com o auditório e procurando ritmos e harmonias unificadas. Porém, nada nos deslumbrou como Jacob Collier na sala Capitol de Compostela. Por se não fosse suficiente o seu show de duas horas num contínuo trabalho de deconstrução e reconstrução musical, passando em rápida vertigem de guitarra a piano, de teclados a baixo, voz e percussão, este músico genial de apenas vinte e sete anos deixou para o final oito minutos do melhor ensaio e concerto com público que dirigiu com insólita destreza. Sem mais instrumentos que a voz, as mãos e os movimentos do corpo arrancou dos assistentes insuspeitados jogos polifónicos, quer simultâneos, quer alternantes ao a jeito de canon, e todo num tempo e uma rítmica bem quadrada. Poderia-se falar de um público selecto, músicas e músicos em boa parte, mas em qualquer caso o mérito é do artista.


(Publicado no número 518 de Sermos Galiza, suplemento semanal de Nós Diario, sábado 10-09-2022)


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