QUANDO EMERGEM OS CANTOS POPULARES
César Morán: Cantautor, compositor e escritor

Não sei onde aprenderia meu pai a cantiga da que hoje falo. Muitas das canções que ouvia de pequeno aprendera-as da minha mãe, mas esta veu polo meu pai. Ele saíra aos dezasete anos da aldeia berciana para trabalhar em Manresa nos caminhos de ferro, depois foi o serviço militar em Salamanca e andou por terras leonesas com gente palentina e de outras partes, mesmo quando se estabeleceu em diferentes cidades galegas. Entre as cantarolas que lhe ouvia estava esta de “Tanto vestido blanco, tanta parola / y el puchero a la lumbre con agua sola”, algo que por vezes me vinha à memória ao longo dos anos sem o pretender.
Uns meses atrás estava a ouvir o último disco de Rozalén, Matriz, e achei com grata sorpresa a mesma cantiga, “Arrión”, esplendidamente versionada. Rozalén conheceu-na por Eliseo Parra, com quem a interpreta não só neste disco mas também no de Eliseo, Diacrónico, ambos publicados em 2022, duas joias.
Trata-se de um cantar tradicional e anónimo cujas origens são incertas, como lemos no blog de Jesús Fonocopiando, que aponta a uma recolha a fins do século XIX em Andaluzia, com expressão mais ampla a seguir. Tanto aqui como no próprio disco de Eliseo Parra alude-se à estreia em Madrid em 1897 da zarzuela Agua, azucarillos y aguardiente de Federico Chueca, onde se emprega o início do cantar, e diz-se que certas canções populares se refugiaram no repertório infantil antes de desaparecer. Também se fala de adaptações populares durante a Guerra Civil e de que a canção fica em terras leonesas e salmantinas.
O tema da cantiga é a crítica burlesca e divertida sobre quem quer aparentar o que não tem, e bem nos lembra a decadência dos “infanções” nas nossas cantigas de escarnho ou na novela picaresca posterior, o que é facilmente visível nos versos “Tanto reloj de oro, tanta cadena, / Luego van a su casa y no tienen cena”, tema que pervive ainda em refrães galegos como “senhorito de caldo à merenda”. E quanto ao nome, “Arrión” alterna com “alión”, “alirón”, “aciclón”, “acitrón”…, assim como a letra, que varia ligeiramente segundo as versões.
É justo indicar que foi talvez Joaquín Díaz o primeiro em gravar “Arrión” em De la picaresca tradicional (Movieplay 1970), e do mesmo ano é o do grupo Nuestro Pequeño Mundo Uno X Uno (Fonomusic, S.A. 1970), onde aparece com o título do primeiro verso “Tanto vestido blanco”. Num e outro observamos pequenas variações entre eles e a respeito de Eliseo Parra e Rozalén.
Todo vem a conto de que este verão tivemos a fortuna de degustar o magnífico concerto de Eliseo Parra na Romaria de Santa Margarida na Corunha, sensacional ele e o seu grupo. No citado Diacrónico está Eliseo na voz e guitarras, a voz de Rozalén, Xavi Lozano nas frautas e “valo de obra”, Guillén Aguilar no baixo, Antonio Najarro as castanholas e a guitarra de Josete Ordóñez. Em Matriz, para além das vozes, estão os mesmos Xavier Lozano e Guillén Aguilar, mais Pablo Martín na percussão e Álvaro Gandul no teclado. Uma delícia.
(Publicado no número 575 de Sermos Galiza, semanal de Nós Diario, sábado 14-10-2023)
Outros artigos de César Morán :
César Moran: “Os Quadros de MussorgskY”
César Moran: “Música em Luísa Villalta”
César Morán: “Os esquecidos setenta”
César Morán: “Pablo e Silvio, os dous “
César Morán: “O Bombardino de Charles Anne. O músico de Cunqueiro “
César Morán: “Compopstela, de Alfonso Espiño Louro “
César Morán: “Cantar nun concerto”
César Morán: “Parroquias tour” e saúde emocional
A opinión de César Morán: “A espera de Serrat”
A opinión de César Morán: “O mais parecido ao karaoke”
A opinión de César Morán: “Anacleto músico”
Passar, verbo (in)transitivo. De Mirasol a Vinicius
FRANCO BATTIATO: popular e experimental, na busca do transcendente
Xela Arias. História de uma foto.
Na taberna cultural da Arca da Noe