César Morán: “Discos”

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Beber nas fontes

Alguma vez falamos do disco, da crise em que se encontra, do suposto papel secundário ao que parece relegado neste tempo digital de plataformas e redes sociais. Se nos atemos à experiência, diríamos que nada é definitivo, sem que volte a ser igual. Para alguns o disco, após a rádio, foi fundamental e segue a ser importante como fonte de conhecimento, de expressão e de prazer. Acontece que estes dias veu à casa uma equipa que está a fazer um audiovisual e queria que lhes mostrasse os meus discos. Nuns segundos fiquei algo confuso, pois o diretor da equipa sinalou o lugar onde tenho os LPs de vinil, que sem serem muitos estão numa disposição aleatória. Os CDs, em troca, estão ordenados alfabeticamente –em teoria–, o mesmo que as fitas cassetes, mais de duascentas, que gravei devagar ao longo dos oitenta e noventa com aquela maravilhosa pletina a partir dos melhores discos que passavam pola casa, muitos vinis e também CDs quando acabei tendo o reprodutor. Mas as cassetes, como as fitas de vídeo 8 em analógico, estavam ocultas trás umas portinhas nos baixos do móvel, e ninguém me pediu contas delas.

Eu, desculpando-me pola desordem, fum sacando os LPs tal como estavam, e curiosamente o primeiro que apareceu foi a oitava e a nona sinfonia de Beethoven, dirigidas por Herbert Von Karajan com a Filarmónica de Berlim, num estojo de cartão rígido, editado pola Deutsche Grammophon, que eu ouvia intensamente aos meus vinte anos. Lembro que fechava a porta e punha-me a dirigir como um possesso sem que ninguém me visse, como se houvesse público no teatro imaginário. Depois vinham As Quatro Estações de Vivaldi, pola English Chamber Orquestra, com Henryk Szeryng como diretor e solista, onde eu via o ponto mais alto a que podia chegar a lírica, e –oh, prodígio!– o terceiro eram as Variations Goldberg de J.S. Bach, com a particularidade de serem interpretadas no harpsichord por Keith Jarret, o genial compositor e pianista de jazz que desborda os géneros. Todo branco, gravado no oitenta e nove.


OS MELLORES ESTABLECEMENTOS

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Detrás vinham os éxitos de Adamo, um disco de adagios e outro do grandíssimo Al Bano, com “Vecchio Sam”, “ O sole mio”, “Mattino”, e sopratutto aquele “Caro, caro amore” tão íntimo e sugestivo… E conforme ia tirando cada disco do andel, era bem consciente de que poderia escrever uma página e uma obra de cada um deles graças ao seu poder magnético. De todos eles Mediterráneo de Serrat era o mais gastado, rotos os cartões e mal reparado com velha fita adesiva. Daí ao primeiro Miguel Hernández –todo em negro–, o “Ara que tinc vint anys” (El Setze Jutges) e a sua música jazzeada por Tete Montoliu. Não tarda em aparecer o Pink Floyd de Atom Heart Mother que nos marcou para sempre, com as fotos das vacas e um adesivo de Discos Nito’s. A seguir George Brassens, Michael Brecker, Luz Casal, Tom Jones, o Gener 1976 de Lluís Llach, a imensa Mari Trini e a Salsa Catalana da Orquestra Mirasol.

Dos singles, o neno Michael Jackson versionando “Ain’t no Sunshine” em 1972.


Publicado no número 664 de Sermos Galiza, o semanal de Nós Diario, 28 de junho de 2025: p. 23.


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