O QUE VAI POR DENTRO
César Morán: Cantautor, compositor e escritor
Neste tempo de música extrovertida que campa na vox populi, incitada e dirigida por agências e grupos mediáticos, que mesmo se exibe e se promove com critérios culturais em cabeceiras de jornais e revistas, quando a arte se banaliza e semelha que todo vale, então é que por contraste, sem o pretender e como necessidade de água fresca, abrolha no teu corpo a música de interiores. Essa música que está dentro de ti, espalhada em mil buracos no edifício da vida, perdida acaso com os anos mas que leva gravitando polos espaços subterrâneos do edifício, e está sempre aí e aparece e desaparece para voltar de improviso no momento em que a podas reconhecer, ou talvez não.
Música de internado (detesto os internados) que nas primeiras horas da tarde ressoa por todo o edifício de pedra, o imenso edifício de três plantas com apenas quinze anos que tinhas daquela, e é o som de todos os pianos de parede, o do largo comedor, o do salão de atos ao pé do palco, o do amplíssimo faiado onde ensaia a rondalha, os de diversas aulas e recunchos, e entreabrindo portas e subindo escadas ouve-se o som dos aprendizes de piano a praticarem nos estudos de Czerny, Schmitt, Schummann, Bertini ou Ana Magdalena Bach.
Abres os olhos e estás no concerto da Sinfónica que interpreta a mesmíssima 9ª Sinfonia de Beethoven. Leva-la escoitado tantas vezes e é sempre diferente e abraiante. Poderias reparar no complexo e impossível quarto movimento, único, prodigioso e insuperável. Mas hoje ficas absorto no Adagio molto e cantabile do terceiro, pois é o que te transporta ao passado adolescente (detesto os internados), onde o estrito horário de manhã e de tarde te leva ao refeitório, e trás a leve ceia e as últimas leituras chega o último passeio e ritual que conduz à nave dormitório. Cinco minutos para o asseio e ao pouco a meia escuridade deixa passo à música, quase imperceptível até ficar dormido. Foi então quando ouviste por primeira vez os mais dos clássicos que conheces, como o Largo de Haendel com toda a melodia, ou o Outono de Vivaldi.
A fins de agosto a Camerata “Andante con moto” – rapazes e rapazas novas dirigidas por Alexis Díez de Mendoza– oferece um belíssimo concerto com breves peças escolhidas, entre elas a Romanza da Pequena Serenata Noturna de Mozart. Eis o instante em que todo retorna e estás a adormecer na penumbra da nave do pétreo edifício. Se não fosse a música, ouvirias o rumor do vento entre os vinhedos e o pequeno bosque que leva à ria. Mas a música às vezes emudece nos pianos para ao pouco surgir do silêncio. E assim todas as noites, agora o Adagio cantabile da Patética beethoveniana, outrora num arranjo para violino e piano, ao vivo no teatro, que nunca esquecerias.
Nos dias de festa despertavas com música briosa, como o Aleluia de Haendel, e numa ocasião o Hino da Alegria na versão de Waldo de los Ríos e a voz de Miguel, que era novidade. Todo música boa que chegava dentro, como o disco de Led Zeppelin que derrubou os muros de Elsinor.
Publicado no nº 623 do semanário Sermos Galiza, o suplemento semanal de Nós Diario, sábado 14-09-2024.
https://cesarmoranfr.wordpress.com/2024/09/23/musica-de-interiores/
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